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Raquel de Queiroz

 

A VELHA AMIGA

Rachel de Queiroz

 

Conversávamos sobre saudade. E de repente me apercebi de que não tenho saudade de nada. Isso independente de qualquer recordação de felicidade ou de tristeza, de tempo mais feliz, menos feliz. Saudade de nada. Nem da infância querida, nem sequer das borboletas azuis, Casimiro. Nem mesmo de quem morreu. De quem morreu sinto é falta, o prejuízo da perda, a ausência. A vontade da presença, mas não no passado, e sim presença atual. Saudade será isso? Queria tê-los aqui, agora. Voltar atrás? Acho que não, nem com eles. A vida é uma coisa que tem de passar, uma obrigação de que é preciso dar conta. Uma dívida que se vai pagando todos os meses, todos os dias. Parece loucura lamentar o tempo em que se devia muito mais. Queria ter palavras boas, eficientes, para explicar como é isso de não ter saudades; fazer sentir que estou expirimindo um sentimento real, a humilde, a nua verdade. Você insinua a suspeita de que talvez seja isso uma atitude. Meu Deus, acha-me capaz de atitudes, pensa que eu me rebaixaria a isso? Pois então eu lhe digo que essa capacidade de morrer de saudades, creio que ela só afeta a quem não cresceu direito; feito uma cobra que se sentisse melhor na pele antiga, não se acomodasse nunca à pele nova. Mas nós, como é que vamos ter saudades de um trapo velho que não nos cabe mais? Fala que saudade é sensação de perda. Pois é. E eu lhe digo que, pessoalmente, não sinto que perdi nada. Gastei, gastei tempo, emoções, corpo e alma. E gastar não é perder, é usar até consumir. E não pense que estou a lhe sugerir tragédias. Tirando a média, não tive quinhão por demais pior que o dos outros. Houve muito pedaço duro, mas a vida é assim mesmo, a uns traz os seus golpes mais cedo e a outros mais tarde; no fim, iguala a todos. Infância sem lágrimas, amada, protegida. Mocidade - mas a mocidade já é de si uma etapa infeliz. Coração inquieto que não sabe o que quer, ou quer demais. Qual será, nesta vida, o jovem satisfeito? Um jovem pode nos fazer confidências de exaltação, de embriaguez; de felicidade, nunca. Mocidade é a quadra dramática por excelência, o período dos conflitos, dos ajustamentos penosos, dos desajustamentos trágicos. A idade dos suicídios, dos desenganos e, por isso mesmo, dos grandes heroísmos. É o tempo em que a gente quer ser dono do mundo - e ao mesmo tempo sente que sobra nesse mesmo mundo. A idade em que se descobre a solidão irremediável de todos os viventes. Em que se pesam os valores do mundo por uma balança emocional, com medidas baralhadas; um quilo às vezes vale menos do que um grama; e por essas medida, pode-se descobrir a diferença metafísica que há entre uma arroba de chumbo e uma arroba de plumas. Não sei mesmo como, entre as inúmeras mentiras do mundo, se consegue manter essa mentira maior de todas: a suposta felicidade dos moços. Por mim, sempre tive pena deles, da sua angústia e do seu desamparo. Enquanto esta idade a que chegamos, você e eu, é o tempo da estabilidade e das batalhas ganhas. Já pouco se exige, já pouco se espera. E mesmo quando se exige muito, só se espera o possível. Se as surpresas são poucas, poucos também os desenganos. A gente vai se aferrando a hábitos, a pessoas e objetos. Ai, um um dos piores tormentos dos jovens é justamente o desapego das coisas, essa instabilidade do querer, a sede do que é novo, o tédio do possuído. E depois há o capítulo da morte, sempre presente em todas as idades. Com a diferença de que a morte é a amante dos moços e a companheira dos velhos. Para os jovens ela é abismo e paixão. Para nós, foi se tornando pouco a pouco uma velha amiga, a se anunciar devagarinho: o cabelo branco, a preguiça, a ruga no rosto, a vista fraca, os achaques. Velha amiga que vem de viagem e de cada porto nos manda um postal, para indicar que já embarcou.

 

 

GEOMETRIA DOS VENTOS

Rachel de Queiroz

 

Eis que temos aqui a Poesia, a grande Poesia. Que não oferece signos nem linguagem específica, não respeita sequer os limites do idioma. Ela flui, como um rio. como o sangue nas artérias, tão espontânea que nem se sabe como foi escrita. E ao mesmo tempo tão elaborada - feito uma flor na sua perfeição minuciosa, um cristal que se arranca da terra já dentro da geometria impecável da sua lapidação. Onde se conta uma história, onde se vive um delírio; onde a condição humana exacerba, até à fronteira da loucura, junto com Vincent e os seus girassóis de fogo, à sombra de Eva Braun, envolta no mistério ao mesmo tempo fácil e insolúvel da sua tragédia. Sim, é o encontro com a Poesia.

 

 

DIVERSIDADES EM TEMPO DE SECA

 

Quando Chico Bento, depois daquela noite passada ali, no abandono da estrada, chamou a mulher e, ajudando a levantar um dos meninos, foi andando em procura do povoado, em vão buscou, pelas voltas do caminho, sentando nalguma pedra, o vulto de Pedro.

Na estrada limpa e seca só se via um homem com uma trouxinha no cacete, e mais à frente, dentro de uma nuvem de poeira um cavaleiro galopando.

- Que besteira! Naturalmente ele já está no Acarape...

Mas chegaram ao Acarape, e debalde perguntaram pelo menino a todo o mundo. Não... Ninguém tinha visto... Sabia lá!... A toda hora estava passando retirante...

Numa bodega, onde o vaqueiro novamente fez indagações alguém lembrou:

- Homem, por que você não vai falar ao delegado? Ele é que pode dar jeito. Mora ali, naquela casa de alpendre.

No modo que agora era o seu, curvado, quase trôpego, Chico Bento endireitou para a casa apontada, que ficava meio apartada das outras, tendo de um lado um alpendre onde se viam algumas cangalhas de palha roída.

E bateu à porta, enquanto Cordulina se sentava no chão, na beirada do alpendre.

Lá de dentro, uma voz de mulher disse baixinho:

- Abre não, menina, é retirante... É melhor fingir que não ouve...

Chico Bento escutou; e sua voz lenta explicou, dolorida:

- Não vim pedir esmola, dona; eu careço é de ver o delegado daqui...

Um homem de cachimbo no queixo mostrou a cara na meia porta:

- Está falando com ele. O que é?

Chico Bento ficou um instante encarnando o homem, reconhecendo-o.

Mas o delegado, impaciente, repetiu a pergunta:

- O que é que você queria?

- Eu vim falar ao senhor mode um filho meu, que desde ontem tomou sumiço. Nós ficamos na estrada, eu assim, variando muito fraco... e ele veio vindo até aqui. Quando de manhã cacei o menino, não teve quem desse notícia.

É como é ele?

- Assim comprido, magrinho, a cara chupada... está dentro dos doze anos...

O delegado tirou o cachimbo da boca e, calcando com o dedo o tabaco, abanou a cabeça:

- Não tenho jeito que dar não, meu amigo... O menino, naturalmente, foi-se embora com alguém... Um rapazinho, assim sozinho, muita gente quer.

Cordulina ouvia confusamente o que diziam, e chorava, baixinho. Desanimado, Chico Bento sentou-se na mesma beirada de tijolo, junto à mulher.

Ainda na porta, o delegado entrou a fitar o caboclo com insistência, reconhecendo também aquela cara, o jeito de ombros, a fala.

E perguntou:

- Donde você é?

A voz cansada soou fracamente:

- Eu sou filho natural de Iguatu, mas faz muito tempo que morava pras bandas do Quixadá.

O homem procurou arejar a memória:

- Nas terras de Dona Maroca?

- Inhor sim, nas Aroeiras...

O delegado abriu a porta e saiu para o alpendre:

- Bem que eu estava conhecendo! É o meu compadre Chico Bento!

Chico Bento pôs-se em pé:

- Inhor sim... Eu também, assim que olhei pra vosmecê, disse logo comigo: este só pode ser o compadre Luís Bezerra... Mas pensei que não se lembrava mais de mim...

O delegado convidou:

- Entre, compadre! Essa é a comadre? Adeus, comadre, entre também! Cadê meu afilhado? Será esse que fugiu?

Cordulina entrava, puxando por um dos meninos, e respondeu:

- Inhor não... O seu afilhado era o Josias, morreu na viagem...

O homem chamou a mulher:

- Eh! Doninha! venha falar com uns conhecidos! Entre, compadre, ela está na cozinha. Vá entrando!

Depois, ficando só com Chico Bento, atentou na miséria esquelética e esfarrapada do retirante:

- Então, compadre, que foi isso? A velha largou você?

- Ela não quis tratar do gado mode a seca, e mandou abrir as porteiras... E eu fiquei sem ter o que fazer. A morrer de fome, antes andando...

O delegado quase deixou cair o cachimbo, num assombro:

- Não diga isso, compadre, não é possível! Deixar morrer aquele algodão todinho, sem mais pra quê!

- Pois mandou soltar no dia de São José! Eu ainda esperei obra duma semana...

O delegado se exaltou, gesticulando com o cachimbo:

- Aquela velha é uma desgraça! Tenho fé em Deus que o dinheiro que ela poupa ainda há de lhe servir pra comer em cima duma cama... Você não se lembra por que foi que eu saí das Aroeiras, compadre? Me convidou para abrir uma bodega, que me daria mundos e fundos, garantia de um tudo. Gastei o que tinha e o que não tinha em mercadoria, e o resultado foi aquele... Era obrigado a fornecer a ela pelo custo, tinha de fazer isso, fazer aquilo, e ela não me dava interesse de qualidade nenhuma. Um dia mandei tudo pro diabo, liquidei como pude o que possuía, e me larguei pra cá. Inda hoje não me arrependi... Mas você ficou, foi-se fiar nesse negócio de madrinha Maroca, teve o pago...

Chico Bento baixou a cabeça, concordando; olhou em redor, a casa caiada, a mesa envernizada, uma arca de couro, um relógio de parede:

- É, compadre, você está bem...

Lá de dentro a voz de Doninha chamou o marido:

- Luís, traz o compadre aqui, pra botar qualquer coisa no estômago!

Quando viu Chico Bento abancado, comendo, o delegado saiu da sala:

- Vou mandar dois cabras atrás de seu menino. Não mando praça, porque só tem lá na Redenção. Aqui no Acarape, só requisitando.

Do alpendre, mandou um moleque com um recado, e os dois cabras chegaram:

- Vocês vão ver se encontram um menino, filho de retirante, que atende por Pedro. Sumiu-se esta noite. Vejam lá se dão um jeito de achar. O pai anda em tempo de correr doido e é meu compadre!

Depois foi à cozinha, consolou Cordulina:

- Sossegue comadre, já mandei caçar seu filho. Se estiver por cima do chão, se acha...

Mas os cabras voltaram ao meio-dia sem o menino.

Um deles não conseguira apurar nada. O outro contou que o menino tinha sido visto na véspera de noite, num rancho de comboieiros de cachaça.

- Naturalmente tinha ido embora mais eles, de madrugada...

Cordulina já quase nem chorava.

Talvez fosse até para a felicidade do menino. Onde poderia estar em maior desgraça do que ficando com o pai?

Nesse mesmo dia, à tarde, tomaram o trem para a cidade.

Alma boa, o compadre Luís Bezerra! Tinha arranjado passagens, dera uma roupa sua ao Chico Bento, tinha feito a Doninha arranjar um vestido velho para Cordulina...

E agora, sentados, juntos, apertados, os três meninos que restavam muito agarrados a eles, abrindo os olhos de espanto à confusão de gente que se aglomerava no carro sujo, cuspido, fumacento - com as roupas brancas lavadas contrastando esquisitamente com a espessa sujeira dos corpos - Cordulina e o marido sentiram o trem apitar e sair correndo, e viram sumir a casa branca com o alpendre do lado, onde o compadre Luís Bezerra, em pé, de mãos nos bolsos, fumava o seu cachimbo.

No mesmo atordoamento chegaram à Estação do Matadouro.

E sem saber como, acharam-se empolgados pela onda que descia, e se viram levados através da praça de areia, e andaram por um calçamento pedregoso, e foram jogados a um curral de arame onde uma infinidade de gente se mexia, falando, gritando, acendendo fogo.

Só aos poucos se repuseram e se foram orientando.

Cordulina acomodou-se como pôde, ao lado do cajueiro onde tinham parado.

Da banda de lá, um velho deitado no chão roncava, e uma mulher de saia e camisa remexia as brasas debaixo de uma panela de barro.

Cordulina foi à sua trouxa, e tirou de dentro um resto de farinha e um quarto de rapadura, última lembrança da comadre Doninha.

Deitado na areia, calçado com um pano, já o Duquinha dormia. Os outros dois metiam a mão na farinha engolindo punhados.

Chico Bento olhava a multidão que formigava ao seu redor.

Na escuridão da noite que se fechava, só se viam vultos confusos ou alguma cara vermelha e reluzente, junto a um fogo.

Tudo aquilo palpitava de vida, e falava, e zunia em gritos agudos de menino, e estralejava em gargalhadas e em gemidos, e até em cantigas.

E estendendo a vista até muito longe, até aos limites do Campo de Concentração, onde os fogos luziam mais espalhados, o vaqueiro sacudiu na boca uma mancheia de farinha que lhe oferecia a mulher e, procurando quebrar entre os dedos um canto de rapadura, murmurou de certo modo consolado:

- Posso muito bem morrer aqui; mas pelo menos não morro sozinho...

(Trecho de "O quinze" - 1930)

 

 

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